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domingo, 20 de janeiro de 2008

Ruivães nas Invasões Francesas



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Essa tropa de elite, que no planalto de Pratzen, inebriada pelo sol da glória, dobrou a força de dois impérios e conquistou com os seus sabres e as suas baionetas ensanguentadas a mais fulgurante e estimável vitória para as águias napoleónicas, veio aqui, ao Norte de Portugal, morder o amargo fruto da derrota, imposta não por grandes exércitos, mas pela tenacidade sem limites, pelo sacrifico sem reservas e pela coragem sem vacilações da humilde gente rural.


Napoleão resolveu apropriar-se de Portugal (…) Tal foi o começo dos maiores erros e das maiores infelicidades do seu reinado (…) origem das desgraças da nossa pátria infortunada, arrastada com o seu herói numa queda espantosa" Louis-Adolphe Thiers









Este livro de Carlos Azeredo trata na sua parte final da passagem da II Invasão Francesa por Ruivães, aquando da retirada pela Ponte do Saltadouro e pela Ponta da Misarela. O excerto desse relato feito pelo autor foi aqui (1, 2, 3, 4) colocado em Outubro de 2006, podendo o texto ser lido na integra, aqui.



Para quem estiver interessado em adquirir esta obra, ela aparece agora (2006) editada pela Livraria Civilização Editora sobre o nome “Aqui Não Passaram! – O Erro Fatal de Napoleão”.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Ruivães nas Invasões Francesas IV

A Conclusão da Retirada do II Corpo

A última tropa de Soult a passar a Ponte da Misarela e a deixar aquele cenário de morte e horror, foi a brigada Reynaud da divisão Merle, entre as dez e a meia-noite de 16 para 17; na tarde de 16 o Marechal atingira Paradela, onde estabelecera o seu quartel-general.






«Wellesley, então, desistiu de qualquer esperança em apanhar o II Corpo … ele fez alto com a infantaria britânica em Ruivães e mandou apenas em perseguição da hoste fugitiva o 14.º de dragões britânico e a divisão Silveira».



Sendo a vereda imprópria para a Cavalaria e apenas normalmente utilizável para elementos apeados, Silveira tomou a dianteira dos perseguidores:



«Os franceses tinham desaparecido e foi apenas na manhã seguinte (de 17) que Silveira os seguiu no caminho de Montalegre. Ele capturou vários retardatários na marcha, mas ao chegar à pequena povoação (de Montalegre), viu que a retaguarda de Soult tinha já partido duas horas antes».



Na verdade Soult, partindo de Paradela a 17 para norte, foi saqueando e destruindo as pequenas povoações que encontrou a caminho da fronteira. A fim de melhor se esclarecer sobre o seu flanco direito e prevenir alguma acção de Berestord a partir de Chaves a Boticas, ele próprio marchou com uma divisão de Dragões pela linha de alturas do Gerez divisória das águas do Cávado e do Rabagão. (ver croqui em baixo)

Também neste trajecto em terreno particularmente pobre em recursos as suas tropas tiveram que disputar à boca dos habitantes o alimento, por exíguo que fosse, para enganar a fome, sendo assim assaltadas e destruídas as povoações de Covelo do Gerez, Paradela, Loivos, Fiães do Rio, Vilaça, Coutim, Cambezes e Montalegre, cujos habitantes refugiados na serra, incessantemente perseguiram e atacaram os franceses.

Tal era o ódio contra o estrangeiro invasor que, anos depois, ainda alguns lavradores da região usavam nas suas camisas domingueiras botões feitos de osso de franceses, com a palavra LADRÃO gravada!

Chegado à deserta povoação de Montalegre na tarde de 17, Soult fez avançar Loison até ao desfiladeiro de Cortiços e enviou um destacamento de Dragões em reconhecimento pela estrada de Verim, enquanto que o grosso do 1 Corpo passava o Cávado na ponte da vila e ia bivacar na planície fronteira da margem direita.

Na retaguarda ficou a divisão Franceschi, reforçada com o 47. ° de Infantaria.



«Na noite de 17 para 18 avistámos sobre as alturas das montanhas as fogueiras do inimigo, mas vinha muito tarde para nos cortar a retirada»



Eram as forças de Silveira, bivacadas sobre as alturas que dominavam Montalegre, que só no dia seguinte entrarão na pequena vila fronteiriça.

Na manhã seguinte a 18 de Maio, seguiram o caminho, em marchas forçadas, os 15213 homens que Soult salvara da sua expedição a Portugal com 2000 cavalos (dos 4700 iniciais). Atingem Guinzo onde pernoitam e a 19 entram exaustos, famintos, rotos e descalços em Orense, onde se lhes juntam os 3500 homens que sob o comando do General Lamartiniére tinham permanecido em Tuy.

Era um exército de maltrapilhos, sem Artilharia, com a disciplina seriamente diminuída e o moral abatido:



«A chuva contínua a os caminhos detestáveis pelos rochedos tinham destruído o calçado da infantaria; após oito dias, a maior parte dos soldados não tinham vivido senão de milho assado. Por isso um grande número de ente eles tinham morrido não podendo resistir a todas estas privações.

Muitos ficaram pelo caminho com a certeza de serem assassinados, mas não podendo mais andar não escutavam qualquer súplica para que continuassem.

O moral da infantaria foi muito afectado durante esta retirada, porque esta arma sofreu muito mais do que nós (o Autor era Oficial de Dragões).

O Marechal determinou que cada regimento de cavalaria tomasse 50 infantes doentes, que se montavam nos cavalos e conduzíamos à mão.

Carregados com a sua mochila, a sua espingarda colocada horizontalmente sobre a frente do arção, algumas espigas de milho a tiracolo ao lado de um pequeno odre de pele de cabra vazio, ter-nos-iam em outras circunstâncias divertido bastante, mas os seus semblantes pálidos e desfeitos e os seus pés nus e ensanguentados não nos permitiam guardar senão um sentimento de piedade».



Era este o quadro simultaneamente pitoresco e dramático que era vivido pelas tropas do II Corpo, salvas da total destruição pela vontade férrea e capacidade de chefia do Marechal Soult.

Contudo Adolfo Tiers é bastante severo para com o Duque da Dalmácia; comentando esta sua retirada ele escreve:



«Apesar de tudo que posteriormente se disse, a Capitulação de Sintra após a batalha do Vimeiro travada valentemente ainda que perdida, custou menos à glória do exército e ao seu efectivo que a surpresa do Porto, destruição da nossa artilharia em Penafiel e esta marcha precipitada através desfiladeiros da província de Trás-os-Montes.

O estado moral das tropas correspondia ao seu estado material».



Beresford, que entrara em Chaves na madrugada de 17, lança na manhã de 18 as brigadas Tilson e Bacelar pela estrada de Chaves para Monterrey.



«Na esperança de que Soult depois de passar a serra do Gerez, pudesse tomar a estrada Monterrey — Orense.

Mas o Marechal não tomou este caminho: ele manteve, na vereda o marchou por Porquera e Allariz à esquerda da linha na qual Beresford orientou a sua perseguição».






Estas forças atingem Guizo a 19, quando Soult estava já em Orense.

Silveira, na perseguição do II Corpo para norte, segui-o pelo caminho que de Montalegre vai à povoação de Padroso e passando junto ao Cabeço de Lamas a mais de 1200 metros de altitude, atravessa a fronteira; avançou até S. Tiago dos Místicos onde recebeu ordem de Wellesley para regressar, tendo entrado em Montalegre a 19 para seguir dali para Chaves onde entrou a 20 de Maio de 1809.

Deixando atrás de si um rasto de destruição, sangue e morte, assim acabou a «bela expedição» a Portugal, como se lhe referia o próprio Napoleão nas instruções para a sua execução.

Tendo perdido 27% dos efectivos com que violou a fronteira para pisar a Terra Lusitana, Soult deixou mortos ou aprisionados cerca de 5700 homens, dos quais 2000 perdidos nesta terrível retirada entre Baltar e Montalegre.



Prisioneiro no interior da sua própria conquista, batido sem que se tivesse empenhado em qualquer grande e decisiva batalha, obrigado a destruir a sua artilharia e a largar o produto das suas rapinas, levado a uma retirada humilhante e precipitada através de caminhos ínvios para um exército, descalço e esfarrapado nos seus uniformes, faminto e atirado para um estado moral lastimável, eis a triste situação a que foi reduzido o II Corpo do Grande Exército!

Essa tropa de élite, que no planalto de Pratzen, enebriada pelo sol da glória, dobrou a força de dois Impérios e conquistou com os seus sabres e as suas baionetas ensanguentadas a mais fulgurante e estimável vitória para as águias napoleónicas, veio aqui ao norte de Portugal morder o amargo fruto da derrota, imposta não por grandes exércitos, mas sobretudo pela tenacidade sem limites, pelo sacrifício sem reservas e pela coragem sem vacilações da humilde gente rural, apoiada por alguns Militares e conduzida pelo General Silveira.



No período que sucedeu às lutas liberais, nem sempre se fez justiça a toda esta luta contra o Invasor, a todo este sacrifício em favor da Pátria.



A figura militar do Tenente-General Francisco da Silveira continua praticamente afastada das galerias das nossas unidades e as praças das nossas cidades foram bem mais pródigas em estátuas e placas de Generais mais políticos que militares, mas com menos projecção nacional que Silveira, sem dúvida o Militar mais notável do Exército Portugues durante as campanhas da Guerra Peninsular.



Não terminou com a 2 Invasão Francesa a actuação Militar do General Francisco da Silveira Pinto da Fonseca Teixeira:

— A 10 de Agosto de 1810, Silveira reconquista a vila leonesa de Puebla de Sanábria, ocupada em finais de Julho por tomas francesas que bateram o General espanhol Taboada; após 10 dias de cerco e de combates, em que se salienta o recontro do Outeiro (onde se distinguiu o Cap. De Cavalaria 12, Teixeira Lobo) o inimigo rendeu-se entregando nas mãos de Silveira 400 prisioneiros, material de guerra e uma insígnia imperial de um Batalhão Suíço.

— Desde o inicio de Setembro até meados de Novembro, bloqueia a praça de Almeida, recém-conquistada pelas forças de Ney, retirando prudentemente para Pinhel à aproximação da Divisão Gardanne que acorreu em socorro da praça e pretendia posteriormente juntar-se às forças de Massena.

— A 24 de Novembro na região de Valverde, ataca a Divisão Gardanne que obriga a retirar, deixando no terreno mais de 300 mortos.

Distinguem-se nesta acção plena de sucesso o Coronel das Milícias de Moncorvo António Manuel de Carvalho e os Majores de Cavalaria 12 Luís Paulino e Teixeira Lobo, ambos feridos no combate. O General Gardanne foi obrigado a suspender a sua marcha para se juntar a Massena detido nas Linhas de Torres Vedras, e a regressar a Espanha; Silveira actuou com os Regimentos 12.º de Cavalaria, 24.º de Infantaria e os de Milícias de Moncorvo e Bragança.

— A 31 de Dezembro Silveira é batido com as suas pequenas forças transmontanas, pelos 8000 homens da divisão Claparéde do 9.º Corpo, de Drouet, na Ponte do Abade, onde perde 200 homens; mas retirando para norte do Douro consegue opor-se com sucesso, durante todo o rude inverno de 1810-1811 às tentativa, de Claparéde para passar o Douro afim de recolher provisões no rico Entre-Douro-e-Minho para o faminto exército de Massena.

Travam-se então vários combates ao longo do Douro, nomeadamente no Pocinho, na barca da Régua e na Vila da Ponte, onde os franceses foram sempre repelidos.

— A 28 de Junho de 1811 é agraciado pelo Rei D. João VI com o título de Conde de Amarante, por Carta Régia dessa data e em face dos altos serviços prestados é promovido a Tenente-General em 5 de Fevereiro de 1812.

— Em 1813, durante a Campanha do Sul da França, Silveira assume o comando da divisão do General Hamilton, a qual tem uma acção importante no ataque a Tormes a 25 de Maio.

— A 21 de Junho, na batalha de Vitória (60 000 franceses contra 80000 aliados) a Divisão Silveira (única Divisão portuguesa na batalha), envolvendo a esquerda do inimigo caiu-lhe sobre a retaguarda pondo-o em fuga desordenada e capturando parte da sua Artilharia, bagagens e o célebre tesouro do Rei José Bonaparte.

— Toma parte nas batalhas dos Pirinéus de 28 e 30 de Julho de 1813, onde as suas tropas se destacaram, levando Beresford, sempre bastante reservado em relação a Silveira, a escrever na O. D. de 11 de Agosto: «O Sr. Marechal felicita S. Ex.ª o Tenente-General Conde de Amarante pela brilhante conduta da sua divisão...»

— O General Silveira foi condecorado pelo Governo Inglês com a Medalha de Ouro de Comando em Vitória, de que apenas foram cunhados três exemplares, cabendo um deles ao próprio Wellington, e pelo Rei de Espanha foi-lhe concedido o título de Grande de Espanha e a comenda da Grão Cruz da Ordem de São Fernando.

— D. João VI atribui-lhe a Grão-Cruz das Ordens de Cristo e da Torre e Espada e ainda o título de Grande de Portugal, que junta ao, anteriormente já concedido, de Conde de Amarante.

— Faleceu o Herói a 28 de Maio de 1821 na sua casa em Vila Real de Trás-os-Montes, com testamento de 25 do mesmo mês, de que foi escrivão o pároco da freguesia de S. Dionísio, P. José Botelho de Sousa, e registado a págs. 103 a 106 do Livro de Testamentos da mesma freguesia, actualmente na Conservatória do Registo Civil daquele distrito.

Os seus restos mortais descansam em sepultura própria, na Capela do Espírito Santo da povoação de Canelas do Douro.



Em memória e homenagem a este General e a todos os obscuros Heróis e Portugueses que, numa Pátria invadida, moribunda e arruinada, não desistiram e souberam lutar, foi dispendido o esforço deste trabalho.







Retirado do livro “As populações a norte do Douro e os Franceses em 1808 e 1809”, da autoria de Carlos de Azeredo, editado em 1984 pelo Museu Militar do Porto.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Ruivães nas Invasões Francesas III

A Ponte da Misarela

É numa paisagem estranha, no fundo de um desfiladeiro rasgado no flanco da Serra da Cabreira, entre escarpas medonhas, bravias e solitárias que se ergue a inesperada Ponte da Misarela!

Com o seu tabuleiro lajeado, estendido a cerca de 30 metros e dobrado sobre o fecho de um único arco de 12 metros de altura, a sua idade vem da sombra dos tempos e a crença popular afirma que na sua origem está um pacto maldito firmado entre um padre

e o próprio Diabo.

Por debaixo de si, escumando e despedaçando-se contra a penedia abrupta, passa o Rabagão, grosso no Inverno e no Estio enfiado, a caminho do Cávado.

Entrincheirados na margem direita, guardando a ponte, cuja passagem estava barrada por pesados obstáculos, estavam cerca de 400 homens, comandados pelo Sargento-Mor José Maria de Miranda de Magalhães e Meneses, filho do Capitão-Mor de Ruivães.

Mandado na véspera para a Misarela, por seu pai, com a incumbência de cortar a ponte e efectuar a sua defesa, o José de Miranda não conseguira convencer a maior parte dos seus homens, naturais dali da região, da absoluta conveniência em cortar o arco da ponte.

Como haviam de passar o rio com as suas colheitas ou os seus gados? Como passar para irem à feira ou a Ruivães, quando as águas fossem grossas? Para mais o que era necessário era pôr fora da nossa Terra os franceses! Para quê cortar-lhes a passagem para a fronteira? Quem fez a Ponte de Misarela não nos faz outra como ela!, e nada deste mundo demoveu os rijos e casmurros montanheses a deixar cortar a sua Ponte.

Consentiram em que fossem derrubadas as guardas o atulhado o tabuleiro com troncos, penedos e obstáculos de toda a ordem, mas não mais do que isso.

Impotente, o Sargento-Mor dispôs as suas forças pelas escarpas que dominavam a passagem, abrigadas atrás da penedia e dos robustos castanheiros e carvalhos que ali cresciam.

A meio da manhã foram avistados os primeiros militares inimigos avançando rapidamente para o Rabagão; eram urna longa fila, interminável, de homens e animais, fatigados, que marchavam para norte acossados, mas que a fome, o número e o ódio ainda mantinham temíveis, perigosos e violentos.

Assim que a guarda avançada do II Corpo chegou à distância de tiro, os defensores romperam com um fogo nutrido que dizimou o pelotão da frente e fez recuar, surpreendidos, os que se lhe seguiam.



«Para chegar à Ponte era necessário subir o vale entre um precipício no fundo do qual corre a ribeira, e uma massa de rochas a pique, na base das quais passa o caminho que tinham obstruído com abatizes; por consequência era-se forçado a desfilar, a descoberto, diante dos Portugueses que, entrincheirados por diferentes alturas do outro lado da ribeira, tinham uma enorme vantagem. Por isso os primeiros atiradores recuaram e preveniram o marechal do obstáculo que se tinha encontrado, o que o determinou a vir à frente».



Soult, uma vez nas proximidades da ponte, estudou a situação cuidadosamente e encarregou os Generais Loison e Heudelet de montarem e executarem um ataque a fim de tomar à viva força a passagem e as posições portuguesas.

Os dois Generais após uma curta conferência, incumbiram a brigada Graindorges de atacar e assaltar o inimigo, e novamente o Major Dulong carregou à frente de uma força composta pelos atiradores da Guarda de Paris, um batalhão do 15. ° de Infantaria Ligeira e um outro do 32. ° de Infantaria Ligeira.

Após vários assaltos frustrados que se prolongaram ao longo do dia 16, esta força logrou ao fim da tarde conquistar finalmente a passagem e desalojar das posições mais próximas os camponeses, isto a troco de algumas dezenas de mortos que os zagalotes certeiros dos populares e das Ordenanças ali causaram; um dos feridos por uma bala na cabeça, ainda que sem gravidade, foi o próprio Major Dulong Rosnay.

Vencida esta dificuldade, com bastante perda de tempo, pouco descanso tiveram as tropas de Soult para admirar a beleza da paisagem, que Le Noble nos descreve de forma apaixonada, não obstante a posição difícil em que se encontrava o II Corpo.

Com efeito pouco depois de ter sido conquistada a ponte da Misarela o Marechal Soult atravessou para a outra margem e ali, vendo passar os seus homens, aguardava que a guarda da retaguarda chegassem a fim de se integrar novamente na coluna de marcha, no seu lugar, quando vindo lá detrás, subitamente, se ouviu o troar do canhão e forte fuzilaria. Mas demos a palavra a Le Noble, o qual no seguimento da descrição do local e da sua bela paisagem, escreve:



«Tinha esta paisagem pitoresca chamado a nossa atenção, quando fomos levados à realidade dos acontecimentos militares, mais pelo assobio das balas, que pelo ruído dos tiros das espingardas que os frades e os habitantes atiravam das alturas ... Sendo a passagem do ponte da Misarela mais estreita que e da Ponte Nova (ou do Saltadouro) houve emassamento ente as duas».



Na realidade a largura exígua da Ponte da Misarela agravada pela destruição das suas guardas, dificultava a passagem, com grandes demoras causadas pela resistência das mulas e dos cavalos que se apavoravam com o abismo. É ainda preciso ter em conta o grande alongamento imposto pela vereda que obrigava as tropas a desfilarem em frente por um, facto que levava a que o II Corpo tivesse já a sua testa para lá da Ponte da Misarela enquanto a sua retaguarda se mantinha entre Salamonde e a Ponte do Saltadouro.

A demora na passagem da segunda ponte obrigava a que a coluna tivesse grande parte da sua extensão completamente parada.

Ao ouvir-se na retaguarda o troar da Artilharia e basta fuzilaria, as tropas imobilizadas, sem poderem manobrar para se defenderem, e sentindo-se completamente indefesas caíram no pânico.

Muitos homens, ainda na vereda, procuravam avançar a todo o custo empurrando os camaradas da frente, atropelando-se uns aos outros para chegarem às imediações da Ponte; na sua ânsia de escaparem de uma terrível situação lançavam fora armas e equipamento; os pobres animais famintos ou desferrados eram abatidos ou atirados pelas ravinas, tudo para que se desembaraçasse o caminho e a marcha; muitos homens na Ponte eram atirados ao abismo pelo aperto e pela confusão e aos animais que se recusavam a passar sobre a estreita passagem eram cortados os tendões acima dos boletos ou nos curvilhões.

Soult que tinha passado o rio desejava saber o que se passava na retaguarda para trás da Ponte do Saltadouro; o seu chefe de estado-maior, o General de Brigada Richard enviou para o efeito um Ajudante de Campo ao General Merle, que com a sua divisão vinha em guarda da retaguarda, mas aquele Oficial ao chegar à Ponte não pôde vencer o turbilhão humano dos soldados que em plena desordem procuravam passar, e acabou por ser atirado ao rio.

Foi uma situação terrível, que poderia ter-se transformado numa autêntica catástrofe se a noite próxima não viesse suspender os ataques dos perseguidores.

O ordenador Le Noble, mesmo minimizando o acontecido, conta-nos deste modo o sucedido:



«Às mulas e aos cavalos de baste que embaraçavam os homens cortavam-lhos os tendões do curvillião ou atiravam-nos nos precipícios.

Houve desordens e os papéis e bagagens salvas em Penafiel, perderam-se nesta passagem...

Dois esquadrões de cavalaria ligeira e uma brigada da 1.ª divisão saindo de Salamonde para descerem à Ponte (do Saltadouro), foram atacados por oito ou dez mil homens de infantaria, com artilharia, que tinham chegado em duas colunas, pela estrada de Braga e pela de Basto.

A dificuldade em formar e a obscuridade deram lugar a algumas desordens; uns trinta cavaleiros caíram com os seus cavalos no precipício, sem que os pudessem salvar».



Outro combatente francês descreve-nos assim esta ocorrência:



«Tinha-se à retaguarda um excelente regimento de infantaria ligeira (o 4.º de Infantaria Ligeira, um dos melhores do Exército Francês, segundo Oman), o qual, dada a natureza do terreno, poderia facilmente conter um exército inteiro: pois bem, à vista do inimigo debandou sem que o pudessem convencer a ficar.

A confusão que resultou deste pânico estarrecido foi espantosa.

Infantes e cavaleiros precipitavam-se uns sobre os outros, atiravam fora as suas armas e lutavam para conseguir correr mais depressa.

A ponte estreita e sem parapeitos não podia satisfazer a impaciência dos fugitivos, que se empurravam de tal modo que um grande número de homens foram precipitados e afogados na torrente, ou esmagados sob as patas dos cavalos.

Se os Ingleses estivessem em estado de aproveitar este terror, não sei em verdade o que nos teria acontecido, de tal modo o medo é contagioso mesmo entre os mais bravos soldados»



Mas a sombra misericordiosa da noite veio pôr fim a este verdadeiro holocausto, e as restantes tropas do II Corpo puderam, mais acalmadas, continuar durante toda a noite a passar a fatídica Ponte da Misarela; Silveira e Wellesley suspenderam as operações de perseguição e ataque retaguarda de Soult.

Quando na manhã seguinte os perseguidores de Soult se aproximaram da Misarela, encontraram um espectáculo que lhes deu a dimensão do terror e da tragédia por que tinham passado os franceses:



«O leito rochoso do Cávado (trata-se na verdade do rio Rabagão e não do Cavado, conforme escreve por lapso Lord Munster) apresentava um espectáculo extraordinário.

Homens o cavalos, animais decepados e bagagens, tinham sido despenhados no rio e juncavam literalmente o seu curso.

Aqui, nesta fatal companhia de morte e angústia, foi vomitado o resto do saque do Porto.

Toda a espécie de bons e de valores foram abandonados na estrada, enquanto mais de 300 cavalos boiavam na água e mulas ainda carregadas com bagagens foram içadas pelos granadeiros e pelas companhias ligeiras Guarda; estes desembaraçados e bons rapazes descobriram que pescar caixas e corpos da corrente poderia proporcionar-lhes moedas de prata, e boina ou cintos cheios de moedas de ouro, e, entre cenas de morte e desolação, subiam os seus gritos da mais ruidosa alegria».



Estranhas cenas estas, tão antigas como a própria guerra; em que o homem confrontado com o brilho inimitável do ouro se torna insensível, às maiores desgraças e às mais tétricas situações!





(continua na próxima quarta-feira)

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Ruivães nas Invasões Francesas II

A Ponte do Saltadouro

O Major Warre e o Capitão Gomes, chegados a Ruivães, entraram em contacto com o Capitão-Mor António Luís de Miranda de Magalhães e Meneses e é provável que tenham aconselhado o corte das três pontes de que o I Corpo se poderia servir, na região:

A Ponte Nova, ou do Saltadouro, lançada sobre o ribeiro do mesmo nome, afluente da margem esquerda do Cavado nas proximidades de Salamonde;

A Ponte Velha, ou de Rêz, antiga ponte romana da via Brácara Augusta – Aqua Flávia – Astúrica Augusta, lançada sobre a mesma linha de água;

A Ponte da Misarela que, cerca de uma légua a poente da do Saltadouro, transpõe o rio Rabagão.






A 15 de madrugada, o I Corpo na área de 5. João de Rei, após ter pilhado e incendiado vários povos circunvizinhos, iniciou a marcha para atingir Salamonde ao fim do dia.

A povoação estava deserta, pois os seus habitantes, apesar da inclemência do tempo, tinham preferido refugiar-se nas alturas da Serra da Cabreira a sofrer as consequências da passagem da soldadesca francesa.

Soult acantonou parte das suas tropas na Igreja e nas casas da povoação, que após o normal saque, foram no dia seguinte incendiadas.

Naquele tempo a estrada, a partir de Salamonde, dividia-se em dois itinerários:

O da direita era a estrada que, por Ruivães, Venda Nova e Boticas, atingia Chaves; fora o caminho que Soult seguira em Março anterior, em sentido inverso, aquando do seu avanço sobre Braga.

O da esquerda, era um caminho difícil, uma autêntica vereda áspera que descia de Salamonde, em zig-zagues muito fechados, a íngreme vertente do Cavado e depois a do rio de Ruivães, até atingir a Ponte do Saltadouro; seguia depois junto à margem esquerda do Cavado para passar, uma légua à frente, a impressionante Ponte da Misarela, e atingir mais a norte Paradela e Montalegre, já na fronteira.

Em Salamonde o Duque da Dalmácia obteve informações de que o Brigadeiro Silveira estava instalado nas apertadas gargantas da Serra da Cabreira, barrando-lhe a estrada de Braga para Chaves; também de que a Ponte de Rêz estava cortada e defendida. No que se referia ao itinerário da direita, para Montalegre, estava livre de tropas e apenas defendido na Ponte do Saltadouro por populares e Ordenanças. Deste modo Soult decidiu rapidamente abandonar a estrada para Chaves e seguir a vereda para Montalegre.

Ninguém julgaria possível fazer passar por ali um exército, e era até provável que os seus perseguidores nem conhecessem a existência de tal passagem, e isso mesmo era a segurança, a salvação do I Corpo!

Por aí se lançaram as tropas francesas, rotas, famintas, descalças e escorraçadas, qual fugitivo rebanho que lobos esfaimados perseguissem inexoravelmente.



«O exército iniciou um terrível desfile; dois homens de frente mal podiam, avançar à direita havia rochedos a pique e à esquerda precipícios nos quais o Cavado rolava, mugia e desaparecia».



Era um caminho impraticável, sobretudo para a Cavalaria:



«Nesta região de montanhas que nunca conhecera de quadrúpedes senão algumas cabras selvagens, nós éramos obrigados a marchar a pé, conduzindo os nossos cavalos pela rédea, puxando-os muitas vezes para os fazer transpor um rochedo que a todo o momento nos barrava o caminho.

Marchávamos assim um a um; a testa do regimento atingia o cume de uma montanha, enquanto a cauda se mantinha ainda no fundo da ravina.

O exército inteiro foi obrigado a passar por estes caminhos.

Tendo destruído os cunhetes da artilharia, distribuíram a cada Infante vários pacotes de cartuchos, mas e chuva que caía há alguns dias tinha-os deteriorado de modo que não podíamos disparar um só tiro».



Como já dissemos, Soult foi também informado de que e Ponte do Saltadouro, ou Ponte Nova. (a Ponte Velha era a de Rêz, sobre a mesma linha de água, mais a sul junto a Ruivães) estava defendida e possivelmente cortada, por populares e algumas Ordenanças.

Em verdade o Capitão-Mor de Ruivães, António Luís de Miranda de Magalhães e Meneses mandara convocar pelos párocos das freguesias próximas as Ordenanças da sua área, e ao seu apelo acorreram cerca de 1300 homens, dos quais a maior parte, tinha como armamento, simples utensílios de trabalho, piques ou algumas espadas velhas; só muito poucos se encontravam equipados com obsoletas armas de pederneira, e tinham como apoio duas velhas peças de Artilharia.

Entre estes efectivos avultava a Companhia de Ordenanças de Montalegre que chegara a Ruivães na manhã de 15.

O Capitão António Luís de Miranda, ainda neste dia dispôs as suas forças ao longo da escarpada margem direita do rio Saltadouro, ou de Ruivães, entre a Ponte de Rêz, na estrada para Chaves e a Ponte do Saltadouro no caminho para Montalegre.

Junto de cada ponte colocou uma das bocas de fogo de que dispunha, e mandou ainda algumas forças para a Ponte da Misarela; os efectivos colocados junto de cada uma destas três pontes tinham como missão efectuar o seu corte e levar a cabo a sua defesa.

No Saltadouro os defensores levaram a cabo a tarefa de cortar o único arco da ponte com bastante rapidez e ao fim de algumas horas a passagem estava cortada.

Soult não perdeu tempo: perante as notícias recebidas, mandou vir à sua presença, no princípio da noite de 15 para 16, o Major Dulong Rosnay do 32.° Regimento de Infantaria Ligeira da Brigada Graindorges, a quem expôs a crítica situação em que se encontravam as forças francesas e da necessidade absoluta de rapidamente se conseguir uma passagem que garantisse a retirada. Seguidamente encarregou-o de, com 100 homens, à sua escolha, conquistar a passagem da Ponte do Saltadouro, por uma acção de surpresa durante a noite.



«Desde as 10 horas da manhã (de 15), o tempo estava detestável; ao fim do dia a chuva ainda aumentou e verdadeiras torrentes de água corriam nas ruas de Salamonde.

A obscuridade era a mais profunda, circunstância favorável a uma surpresa».



O bravo Major escolheu os seus homens cuidadosamente, saiu de Salamonde e a coberto da noite aproximou-se em completo silêncio dos restos de velha Ponte.

Esta, cortada durante o dia pelos homens do Capitão-Mor de Ruivães, erguia na intempérie nocturna e inclemente os ramos do seu único arco, quais dois braços negros e gigantescos, crispados num gesto de súplica. Em baixo as águas do Saltadouro escumavam com fragor as suas raivas perpétuas contra os penhascos crus das margens ravinadas.

Dulong deixou os seus homens escondidos nas proximidades e sozinho adiantou-se para estudar a situação; rastejando envolto no negrume da noite, avançou até à extremidade do encontro suspenso sobre o abismo, e ali constatou com espanto e incredulidade que os defensores, após tanto trabalho para cortar o velho e robusto arco de cantaria, tinham deixado uma prancha estendida entre os dois braços da ponte.

Esquecimento? Desleixo? «A imprudência portuguesa?».

Na verdade um daqueles acasos imprevistos e inacreditáveis que tantas vezes alteram o curso da História!

Dulong não perdeu tempo e enquanto, poucos metros à sua frente, os defensores dormitavam abrigados numa choupana e entregues a uma sentinela incauta e ensurdecida pelo bramir da corrente, recuou cuidadosamente até junto dos seus homens.

Uma vez informados da espantosa sorte, que tanto ajuda os audazes, Dulong voltou a rastejar até à ponte e fez passar atrás de si, um a um os seus militares ao longo da prancha, olhos fitos na voragem do abismo e músculos retezados para resistir à vertigem; um dos seus homens resvalou na madeira húmida e despenhou-se no turbilhão da corrente lançando no espaço um longo e dramático grito de pavor. Os assaltantes suspenderam a respiração e os movimentos, enquanto Dulong na frente olhava a imóvel sentinela portuguesa; mas o homem continuou mergulhado no seu turpor pois o trovão contínuo da violência das águas abafava todos os outros ruídos. Após alguns momentos de angustiada espera os assaltantes continuaram no seu lento avançar e assim o Major foi colocando a sua força na margem oposta e cercando nas trevas a cabana onde se abrigavam os incautos defensores da ponte, cuja sentinela fora abatida com um silencioso golpe de sabre.

E foi de súbito, sem tempo para reagir, que os ensonados camponeses vislumbraram, à luz ténue dos restos de uma fogueira, o lampejar do aço frio dos sabres e das baionetas empenhado no cruel afã da degola, do rasgar dos corpos indefesos, enfim, do abrir dessas fontes quentes e rubras por onde em borbotões se evola o sopro irrecuperável da vida.

Poucos segundos, alguns gemidos prontamente abafados e o odor pegajoso do sangue fresco, bastaram para consumar aquela tragédia quase silenciosa.

Pobre gente! Vítima da sua ignorância e da sua excessiva confiança, merece bem, apesar de tudo, a nossa homenagem!

Sem instrução necessária, sem experiência da crueza da guerra, fez o que estava ao seu alcance e deu generosamente a vida na defesa da sua Pátria!

As restantes forças do Capitão-Mor, finalmente alertadas com o que se passava junto à Ponte, tentaram reagir, mas ao perceberem que os franceses tinham passado já a ponte em número que a escuridão e a surpresa multiplicavam assustadoramente, debandaram em pânico, monte acima!

Durante o resto da noite os sapadores trabalharam arduamente para restabelecer com troncos e pranchas, a passagem ao exército de Soult na Ponte do Saltadouro, e de manhã a vanguarda do II Corpo comandada por Loison pôde reiniciar a sua marcha.

Mesmo assim a passagem dos franceses com os seus 4000 cavalos, sobre uma estreita passagem sustentada por alguns troncos, sem guardas, demorou o dia todo, com a perda de muitos animais que se encabritavam e se despenhavam na torrente.

Na retaguarda a brigada Mede e dois regimentos de Cavalaria, instalados numa ravina lateral, a direita apoiada no rio e a esquerda nas escarpas que dominavam a estrada de Salamonde, impediram lutando, que um regimento de Dragões britânico das avançadas de Wellesley se aproximasse do confuso ajuntamento de tropas que ansiosamente aguardava a sua vez de transporem a Ponte.

Entretanto a testa lançava-se pelas escarpadas vertentes do Cavado, na direcção de Paradela.

Mas após duas horas de marcha a tropa francesa foi detida no sítio da Ponte da Misarela, sobre o rio Rabagão: o pesadelo de Soult ainda não terminara!





(continua na próxima quarta-feira)

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Ruivães nas Invasões Francesas I

(...)


Deste modo a 14 de Maio, o Marechal Soult em Guimarães conseguia reunir tudo o que lhe restava do II Corpo – cerca de 18 000 homens, salvo urna pequena guarnição que se mantinha em Tuy.

Deixava atrás de si 1200 feridos e doentes nos hospitais do Porto e 800 nos hospitais de Viana e Braga.

Se o mau tempo dificultava a marcha das tropas; tanto francesas como Luso-Britânicas, também conservava grande parte das populações recolhidas nas suas casas, o que permitiu a Soult chegar até ao Pombeiro sem ser muito molestado, contudo a partir desta localidade as guerrilhas do Minho formadas na base de elementos das Ordenanças não mais irão deixar em paz as suas tropas.

Em Guimarães, ao deparar com as pesadas e ricas impedimentas bem engordadas com os assaltos e rapinas de Loison e Lorges, Soult mantém a férrea decisão de destruir tudo o que pudesse embaraçar a marcha do seu exército, tal como fizera em Paredes.

Os cavalos e muares da Artilharia, que foi aqui igualmente destruída, foram carregados com viveres para o exército e munições para espingarda.

Tirando partido do terror que o nome do «Maneta» inspirava às populações, de momento a sua principal dificuldade, Soult colocou no comando da sua guarda avançada o General Loison com a divisão Heudelet e os Dragões de Lorges; seguiam-se os cavalos e mulas da Artilharia com as munições e víveres que se puderam transportar; marchavam depois as divisões de De Laborde e Merrnet; a guarda da retaguarda, comandada directamente pelo Marechal que assim destinava para si o posto de maior risco, era formada pela Infantaria de Mede e a Cavalaria Ligeira de Franceschi.

Enquanto o II Corpo se preparava para prosseguir na sua marcha a partir de Guimarães, Wellesley que deixáramos em Vila Nova de Gala, passa ainda a 12 para o Porto, onde foi usufruir do almoço que Soult, na sua pressa não pudera comer, e à noite tem o prazer de deparar com uma cidade que festejava com luminárias a sua chegada.

Os dias 12 e 13 gastou-os Wellesley a transportar a Artilharia, o trem e as bagagens das suas forças, de Gaia para a margem norte do Douro, servindo-se para o efeito das embarcações que pôde encontrar, já que a Ponte das Barcas havia sido destruída por Soult no dia 11, circunstância que tornou a operação bastante morosa.

Para mais, grande parte dos mantimentos necessários às tropas tinha ficado em Coimbra e era preciso fazer avançar essa parte do trem, já que na Cidade nada foi encontrado, senão Vinho do Porto em abundância, e do qual era necessário afastar as tropas, caso contrário haveria resultados desastrosos para a disciplina.

Durante esses dois dias de grande azáfama, Sir Artur tomou duas medidas que se impunham de imediato, e foram bastante importantes:

Proteger da vingança popular os feridos e doentes que Soult deixara nos hospitais da Cidade, e impor com mão férrea a disciplina e a ordem nas ruas do Porto, onde a sua falta já fora a origem de graves desastres anteriormente; para tal nomeou Governador Militar com poderes civis o Coronel Trant.



Porque tem interesse e nos dá de modo lapidar um testemunho de que a ética militar atingira já estádios de grandeza, aqui se transcreve a Proclamação do Marechal-General do Exército Britânico e General-em-Chefe das forças conjuntas Luso-Britânicas aos habitantes do burgo portuense:


PROCLAMAÇÃO Arthur Wellesley, General-em-Chefe do Exército Britânico em Portugal, e Marechal-General do Exército de S.A.R o Príncipe Regente. = FIABITANTES DO PORTO: —As tropas Francesas foram expulsas desta Cidade pela bravura e disciplina do Exército que comando. Eu exijo dos habitantes, que compassiva e humanamente se comportem para com as referidas Tropas, que aqui se acharem doentes ou prisioneiras.

Pelos Leis de Guerra eles têm direito à minha Protecção e é m dever prestar-lha, e será mui consciente com a generosa Magnanimidade dá Nação Portuguesa o não serem vingados nestes infelizes indivíduos os ultrajes e calamidades que a mesma Nação sofreu, porque eles só foram instrumentos de outros mais Poderosos, que ainda existem em armas contra nós.

É pois por conseguinte que eu ordeno, que os habitantes desta Cidade permaneçam tranquilos nas suas casas, e que pessoa alguma que não seja pertencente ao Corpo Militar se apresente armado nesta Cidade; ficando na certeza que no caso de contravenção, ou de se acharem ultrajados, ou atacados os referidos indivíduos, serão punidos os réus, como transgressores das minhas ordens.

Tenho nomeado ao Coronel Trant, Comandante desta Cidade, até que as determinações do Governo de S. A. R. não hajam de obstar a esta nomeação; e ao mesmo Comandante tenho ordenado que se use de todas as medidas necessárias para que esta Proclamação seja obedecida, e produza os desejosos efeitos de uma completa tranquilidade, e sossego, do que depende a paz, que ansiosamente solicito.

Quartel-General do Porto. 13 de Maio de 1809.

(a)     Arthur Wellesley




Até ao fim do dia 13, Wellesley ainda com grande parte da sua artilharia em falta, desconhecia por onde, misteriosamente) desaparecera Soult e as suas tropas.

Só a meio da tarde deste dia recebeu a informação enviada por Murray, que com a Legião Alemã e dois esquadrões avançara até Baltar, de que tinha sido ouvida uma fortíssima explosão para os lados de Penafiel, e de que grandes núvens de fumo eram avistadas à distância; tal facto deixava supor, entre outras possibilidades, o que se teria passado naquela área, mas a confirmação do ocorrido e o destino de Soult só foram obtido quando se apresentou às avançadas de Murray o secretário português do General Quesnel que fora (pela segunda vez) o encarregado francês da Administração Civil da cidade do Porto

O volúvel e prestimoso secretário, ao perceber que os seus patrões estavam na mó de baixo e não apreciando muito os ásperos atalhos por onde se metera o Duque da Dalmácia com as suas tropas, montou a cavalo e tranquilamente veio procurar os novos senhores da Cidade, a quem, para garantir a sua aceitação «forneceu preciosas informações que o haviam de salvar de ser acusado de traição por ter servido o inimigo.

Ele deu meticulosos e detalhados informes de tudo o que tinha acontecido à coluna de Soult, e tinha presenciado a sua partida na senda atribulada para Guimarães.

Apenas sobre Loison ele não tinha certeza; este oficial, disse ele continua provavelmente em Amarante, a conter Silveira e Berestord».

Murray, após se ter assegurado, na manhã de 14, de que Loison também partira para Guimarães lançou-se através da Serra de Santa Catarina no encalço de Soult, levando consigo duas peças de Artilharia, o que constituiu sem dúvida uma proeza, mas também um retardamento para a sua marcha.

Não conseguindo alcançar a retaguarda do I Corpo, «ele apanhou, contudo, vários Franceses extraviados e contemplou os corpos de muitos mais que tinham sido assassinados pelos camponeses».

Enquanto Wellesley, aguardando que chegassem de Coimbra os mantimentos para as suas tropas, estava relativamente paralizado, Berestord, chegado a 13 a Amarante, enviava Silveira a 14 com as suas forças para barrar na área de Salamonde a marcha de Soult para Chaves.

Contudo o duro Marechal britânico vai inexplicavelmente demorar 3 dias em Amarante, para só a 15 partir para Vila Real a caminho de Chaves, que só atinge na madrugada de 17.

Do lado francês a marcha prosseguia, em condições duríssimas, na manhã de 14 partida de Guimarães e à noite foi atingido o vale do Cavado a norte de Póvoa de Lanhoso.

O gosto um pouco romântico da época levou alguns autores a compor aqui uma cena tão impregnada de um sabor de gesta alexandrina como de irrealidade: Soult a formar as suas tropas nos locais onde, meses antes travara a «Batalha de Póvoa de Lanhoso» ou seja o Combate de Carvalho de Este contra o Barão de Eben, e a reanimar, com um belo discurso, as suas tropas abatidas. A realidade era outra, era a fome generalizada, os pés descalços e em ferida dos seus homens, os uniformes rotos e sujos, uma chuva inclemente e um inimigo a morder-lhe nos calcanhares.

Também Le Noble concorreu para a criação desta fábula, quando escreve: «O marechal fez formar todas as divisões sobre os mamelões que se levantam em anfiteatro, desde a ribeira do Lanhoso até abaixo de São João de Rei, ele modo que de todos os lados cada um visse como ainda éramos numerosos e que as perdas se reduziam à artilharia destruída voluntariamente...», mas tanto Naylies como o próprio Soult são omissos neste episódio, nítido produto do estilo panegirista do ordenador Le Noble.

Soult ainda nesta altura foi tentado a seguir a linha de retirada do Alto Minho e para tal, a 15, lançou um reconhecimento sobre Braga, com a Cavalaria de La Houssaye; mas quando os franceses se aproximavam da Cidade dos Arcebispos já ali acabavam de entrar as avançadas de Wellesley, o que levou a pôr definitivamente de parte aquela opção.

È verdade que Soult tinha ainda a possibilidade de tentar bater Wellesley e abrir caminho para Tuy, mas com Silveira nas proximidades de Ruivães a sua posição continuava crítica: «O tempo urgia, porque o exército inglês iria entrar em Braga e eu não podia impor-lhe uma batalha com o exército português nas costas».

Só restava ao Duque da Dalmácia lançar-se afoitamente na direcção de Salamonde através das íngremes vertentes da Serra da Cabreira sobre o rio Cavado.

Desde o vale do rio Ave as populações, conduzidas pelos clérigos e elementos preponderantes das localidades próximas, ata cavam sem descanso a tropa francesa, a quem o mau tempo e os péssimos caminhos dificultavam a marcha tornando-a numa autêntica via dolorosa para os imperiais.

«Perto de Guimarães dois infantes doentes não podiam mais marchar; a guarda da retaguarda quis fazê-los montar a cavalo para os salvar, mas eles estavam tão sucumbidos pelo cansaço que se recusaram.

Apanhados rapidamente pelos camponeses que nos perseguiam, foram, ainda vivos e aos nossos olhos, atirados às chamas de um incêndio».

A caça ao II Corpo era um desafio que desde o início estava perdido para os seus perseguidores que utilizavam tropas regulares com Artilharia e as suas pesadas impedimentas.

Para mais tanto Wellesley como Beresford partiam da falsa premissa de que a Soult só restavam dois itinerários possíveis para a sua retirada: ou o de Braga a Tuy, ou o de Braga a Chaves. Silveira tinha sido enviado para os desfiladeiros da Serra da Cabreira dentro desta errónea convicção.

Aliás Wellesley, alguns dias depois, por não ter conhecimento do itinerário seguido pelos franceses, justificava a fuga com sucesso do inimigo «atendendo que ele tomara caminhos por onde se não emprega um exército que não tenha feito os mesmos sacrifícios»

Mas vejamos quais as posições relativas das diferentes tropas, com base na data de 14 de Maio:

Wellesley mantinha-se no Porto com o grosso das suas tropas e só a 15 as suas avançadas atingirão Braga;

Murray entra ao fim do dia em Guimarães;

Beresford continuava em Amarante, de onde sairá para Vila Real e Chaves a 15.

Silveira sai neste dia de Amarante, na direcção da área de Ruivães a fim de cortar a passagem aos franceses para Chaves.

Soult atinge ao fim do dia a região de São João de Rei, junto ao Cavado, sobre a estrada para Salamonde; é pois notório o seu avanço.

Apesar do mau tempo e das chuvas contínuas que então se fizeram sentir, apesar dos péssimos caminhos e das dificuldades do terreno que eram sentidas por todos os corpos das diferentes tropas, Soult, graças à sua capacidade de decisão e à audácia firme da sua atitude, tinha uma grande vantagem: um exército aligeirado, sem os carros lentos e pesados dos trens, sem as carretas da Artilharia, apto a marchar rapidamente através dos piores caminhos, aspectos que se não verificavam nos seus perseguidores.

Além do mais, tanto Wellesley como Beresford perderam tempo precioso, o primeiro entre os dias 12 e 15 de Maio, no Porto, à espera da Artilharia e Trens das suas torças; o segundo em Lamego de 8 a 12 e depois em Amarante de 13 a 15 de Maio o que lhe não permitiu atingir Chaves antes das primeiras horas do dia 17, data em que Soult passa a fronteira de Montalegre.

Teria sido impossível a Beresford interceptar a marcha de Soult?

Difícil talvez, mas impossivel julgo que não o foi: No dia 14 Berestord ainda em Amarante, enviou por Cabeceiras de Basto até Ruivães, dois Oficiais do seu estado-maior, o Major Warre e o Capitão Gomes que vieram em reconhecimento e pesquisa de informações; Soult estava ainda nos arredores de São João de Rei, e torna-se assim evidente que Beresford teve a possibilidade de ter cortado em Salamonde a passagem do I Corpo se em vez de se ter limitado a enviar com uma pequena escolta dois Oficiais, tivesse feito avançar uma companhia que fosse, capaz de guardar qualquer das difíceis passagens por onde Soult teria de se aventurar, orientando e dirigindo a defesa das pontes do Saltadouro, de Rês e da Misarela, a fim de demorar ali os franceses até que o grosso das suas forças e as de Wellesley pudessem cair-lhe em cima.

Afinal quem acabou por impor a Soult um novo itinerário e barrar a progressão do II Corpo para Chaves foi o General Silveira, posicionado em Ruivães sobre a estrada para aquela praça.

Se é fácil a posteriori fazer a crítica dos acontecimentos, também evidente que as acusações dos autores ingleses a Silveira atribuindo-lhe o insucesso da perseguição a Soult são infundadas e procuram escamotear a falta de uma audaz inspiração que oportunamente iluminasse a mente de Beresford repousado em Amarante.

O próprio Soult explica muito claramente porque tomou a direcção de Montalegre: «eu não podia, também, retomar a direcção de Chaves, o caminho pelo qual tínhamos vindo aquando da minha entrada em Portugal. Na sequência do abandono de Amarante, Silveira pôde marchar para o norte tão rapidamente como os ingleses. Ele tinha ultrapassado Chaves e cortado a ponte de Ruivães, sobre a qual passa a estrada de Braga.

O General português, instalado à retaguarda dessa ponte, ocupava uma posição impossível de forçar».

Vê-se deste modo que a missão de Silveira era a de uma defesa estática apoiada nos obstáculos quase intransponíveis que na região a orografia levanta ao avanço de um exército; as suas forças, aliás, não tinham qualquer capacidade para se oporem em combate aberto às forças francesas.

O Duque da Dalmácia tinha a seu favor importantes vantagens:

Tropas aligeiradas e cerca de dois dias de marcha de distância e avanço sobre o seu mais próximo perseguidor — Wellesley, A sua retaguarda será atingida apenas no desfiladeiro de Salamonde e na passagem da Ponte da Misarela, onde o aperto da mesma impôs uma demora e um alongamento à coluna de marcha excessivos.





(continua na proxima quarta-feira)



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