
Retirado d' O Jornal de Vieira de 1 Abril 2025
«Quando me perguntam onde nasci, tenho por hábito, em tom de brincadeira, dizer que nasci “para lá do Sol posto”, o que geralmente origina a pergunta “onde fica isso?..”. É nesta circunstância que informo que nasci no lugar da Quintã, da antiga freguesia de Ruivães e concelho de Vieira do Minho, cuja localização se situa nas fraldas da serra da Cabreira, a norte desta. Daí que o Sol, nos dias de finais de outono e durante o inverno, quando nasce (se é que nasce), surge sensivelmente por cima do lugar de Zebral na Cabreira e vai emprestando a sua luz ao longo do dia, embora com intensidade diferente, a todos os lugares da freguesia (os lugares de Frades e Soutelos menos beneficiados devido à sua localização mais encoberta), até que se esconde de novo por trás da Cabreira. Ora o dia solar naquelas paragens é influenciado pela configuração da serra, o que origina que os dias solares ali sejam mais curtos do que para sul e oeste da mesma. Vem daí a minha alusão ao “para lá do Sol posto”.
Pese embora as contingências solares, a grandeza daquelas paragens e das suas gentes está mais do que confirmada pelas referencias históricas nos mais diversos documentos, sendo de destacar a “Carta de Foral” concedida no ano de 1363 por D.Pedro I à velha “Villar de Vacas”, hoje Ruivães, bem assim pela importância administrativa que manteve ao longo dos séculos como cabeça de concelho até à reforma administrativa de 1834.
Mas foi a determinação, o empenho e a resiliência daqueles que com a robustez física e mental, própria de quem não se verga às contingências da brutalidade da região, que desbravou montes, construiu muros para sustentar a terra que cultivou, abriu caminhos e enfrentou animais selvagens em guarda dos seus e dos demais, proporcionando condições à formação de aglomerados populacionais que se perpetuaram até aos dias de hoje.
Gente honrada e trabalhadora que se espalhou pelos vários cantos de Portugal e pelo mundo, que com ela levou o orgulho de pertença a um território que, embora de importância política, administrativa e estratégica, não se afirmou com recursos económicos, sociais e infraestruturais de modo a garantir condições de vida condigna às populações que nele se fixaram e que a partir dos anos setenta do século vinte foram diminuindo, por abandono ou não renovação de gerações. Predomina a micro propriedade, onde a agricultura de subsistência, ao longo de séculos, foi a principal fonte de sustento e que foi abandonada por os padrões de vida exigíveis de há varias décadas assim o imporem.
Nas décadas de sessenta e setenta do século XX, raro era o jovem, principalmente das casas de famílias mais numerosas e com menos terras para cultivar que, concluído o ensino primário, por vezes com doze ou treze anos, não fosse enviado pelos pais para servir nas cidades de Lisboa ou Porto. Sendo assim poupados à vida “escrava” do trabalho nas pequenas e improdutivas courelas, aliviando também o numero de bocas a alimentar e promovendo algum retorno financeiro de ajuda de filhos aos pais. Foram, mas não voltaram.
A condição social era muito baixa e poucos tinham a esperança de ascensão. A minha família também se enquadrava nessa condição. Éramos nove irmãos que, graças ao empenho dos progenitores, embora analfabetos, conseguiram incutir princípios orientadores para a vida que surtiram excelentes efeitos. O pai, homem honesto e muito trabalhador, sempre de ar sereno e carinhoso, granjeava o sustento em trabalhos diversos a par do cultivo das pequenas parcelas. A mãe, doméstica, sempre atenta a eventuais desvios dos descendentes, disciplinava e incutia o espírito de trabalho, honestidade e exemplo e sempre dizia que não queria que seus filhos tivessem a vida que ela tinha, obrigando-os aos seus deveres, tanto escolares como católicos. Também, quando concluíam o ensino obrigatório, pelos doze, treze anos de idade, eram enviados para servir tal como outros conterrâneos. E que bem fizeram os meus pais….
Também eu, com doze anos de idade, fui trabalhar para a cidade do Porto, como empregado de comércio. Hoje seria exploração infantil. Mas, se assim não fosse, a tal ascensão social não teria acontecido, tanto na minha família como nas demais. E com muito orgulho posso hoje dizer que, de dois bons cidadãos humildes, analfabetos e agricultores, de “lá de trás do Sol posto”, na terceira geração (netos dos bons cidadãos), temos um Doutorado em Engenharia Civil; uma médica; uma professora do ensino especial; uma engenheira; uma licenciada em multimédia e cinema e vários cidadãos/cidadãs honestos trabalhadores no país e no estrangeiro, que pese embora o seu distanciamento das paragens ruivanenses, são o sangue que honra a terra e os seus antepassados.
O nosso berço, o meio onde se nasce, se cresce, se brinca, enfim, o ambiente em que uma pessoa vive desempenha um papel fundamental na sua saúde e na sua capacidade de ultrapassar obstáculos e enfrentar desafios, contrariando a ideia de pobreza endémica, persistente, sistémica, iletrada, que geralmente se transmite de pais para filhos.
E foi daqueles territórios, onde a rudeza agreste moldou caracteres, que foram libertados cidadãos que engrandeceram outras paragens e com eles levaram o orgulho de pertença a Ruivães, seja qual for o lugar de nascença (Ruivães, Quintã, Vale, Frades, Botica, Santa Leocádia, Soutelos, Paredinha, Zebral ou Espindo).
E “para lá do Sol posto” há gente que lhe corre nas veias o sangue dos bravos que desbravaram montes, que resiste, teima e não se deixa vencer pelas contingências do abandono do interior de Portugal!
Fernando Araújo da Silva
2025-03-28»
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