quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Ruivães e as suas tradições

É com um misto de tristeza, que constato junto de jovens e menos jovens da minha aldeia, uma total ignorância sobre os valores que outrora fizeram história.


Ruivães, foi desde sempre uma terra cheia de tradições, rica de gente que ao longo dos séculos as preservou, mas que hoje, e infelizmente, se vão desvanecendo na poeira do tempo.


É um sintoma dos tempos modernos, a juventude faz orelhas moucas à sabedoria dos mais velhos, se ouvem uma alusão aos tempos idos, uma história conta da pelo avô, ou não passa para eles de uma patetisse, ou é o velhote que está “chéché” e põe-se a inventar.


Para eles, o passado não interessa, mas não há futuro sem passado. Hoje criam-se heróis por computador, virtuais, porém a terra que os viu nascer não é virtual, foi fundada, engrandecida e preservada por homens de carne e osso, destemidos e esses sim, heróicos.


Eu apoio a juventude, comungo os seus ideais, mas... há sempre um mas, o interesse por valores como a nossa terra deve sobrepôr-se a outros de menos valor, que a modernisse nos impinge iludindo-nos a maior parte das vezes.


Não sou jovem, mas também não sou idoso em demasia, vivi porém a minha infância num Ruivães que nada tem a ver com ode hoje.


Sou do tempo (como diz o anúncio) em que electricidade ainda não havia, a estrada era de terra batida, havia uma ou duas telefonias na aldeia e outros tantos automóveis.


Era mau, era, mas que saudades dos serões à lareira, ou na soalheira das portas em noites de luar, onde se ouviam histórias deslumbrantes e por vezes de arrepiar.


Lendas de mouras encantadas alternavam com aparecimentos de lobisomens, bichos de sete cabeças, brucharias e mal olhados, que o contador moldava a seu jeito dando-lhes mais ênfase.


Um bom contador de histórias, era o meu avô (que o diga quem conheceu o tio João do Latoeiro). Era o barbeiro da terra, a cada cliente que fazia a barba ou cortava o cabelo, fazia-o complementando com uma história das que já o seu avô contava, e para fazermos ideia, meu avô nasceu em 1880!


É claro que eu me embevecia a ouvi-lo, ao ponto de preferir ficar na barbearia em vez de ir para a rua brincar com os outros miúdos.


De vez em quando, metia a colherada:


—Avô! Conte aquela da porca que de noite lhe saiu ao caminho arrastando as tetas e lhe deu as Boas Noites!


—Ou aquela do almocreve que mataram na Lomba e quem passasse no local do crime de noite, ouvia gemidos!


Era ouvi-lo também contar as aventuras do Zé do Telhado, que para quem não saiba chegou a refugiar-se em Vale, na casa do Lagarto.


Mas voltemos aos velhinhos costumes de Ruivães.


O Entrudo, por exemplo, mexia com toda a aldeia, já que os caretos eram agressivos levando as pessoas a procurar refúgio na sua passagem.


Os catraios, claro que mal os avistavam encetavam uma correria só parando no mais obscuro canto de casa, pois eles não poupavam nem miúdos nem graúdos.


As vítimas, quando as havia, acabavam com a cabeça cheia de cinza, mas muitas vezes eram também agredidas por um trapo intencionalmente encharcado numa poça de água putrafata, pano esse atado na ponta de um pau.


Havia caretos de todos os tipos, mas pugnavam acima de tudo por não serem reconhecidos. Se alguém se atrevia a alvitrar que era fulano, e acertava, levava para assar.


Quem se lembra do velho Acácio? Pois certo Entrudo, meu avô que era também mestre no disfarce, mascarou-o elevando-lhe os ombros à altura da cabeça, com um alguidar adaptado, e claro que resultou numa figura sem cabeça. Lá foi o pobre homem deambular pela aldeia, provocando uma debandada geral com gritos de pavor esquecendo-se as pessoas que era Carnaval.


Logo depois, vinha a Páscoa, pretexto para se lavar a cara às casas num consumo extraordinário de cal, e era ver Ruivães muito igual às tradicionais casas alentejanas, as ruas eram varridas, retiradas as estrumeiras, alecrim a ornar as portas e janelas, que bonito que era!


Antes ainda, porém, o Domingo de Ramos e principalmente a bênção dos ramos empolgava a juventude, poisa alada igreja junto ao altar-mor enchia-se com enormes ramos de oliveira, nalguns casos quase se via a pobre árvore da raíz à copa.


O meu bom amigo ‘Xico do Pinto”, era imbativel com os seus ramos, que nada ficavam a dever às actuais árvores de Natal. Ornamentava-os com coloridas fitas, bolachas, rebuçados, tudo que pudesse fazer vistasso!


OS. João! Na madrugada de 24 de Junho, dia desse Bom Santo, tudo que era vasos de plantas era surripiado de varandas e janelas, para atulhar a fonte. Acrescentava-se para complicar ainda mais uma carroçasita (por norma a vítima era sempre o azeiteiro), ou um carro de bois, e claro que quem se dirigia à fonte nesse dia, para colher água tinha pela frente uma tarefa bem árdua para a desobstruir.


Enfim! Podíamos ainda recordar as vindimas, as desfolhadas, a apanha da azeitona e as noitadas no lagar a fazer o azeite, o Na tal, as Janeiras, e tantas, tantas outras tradições do tempo em que Ruivães era um exemplo vivo da alma minhota, em que o povo vi via as amarguras de um tempo difícil, mas abria o coração pelos valores da sua terra.


O progresso é bem vindo, mas preservemos o legado dos nossos antepassados, uma cultura, costumes e hábitos que são tão valiosos para nós como se de figuras pré-históricas se tratasse, e isso deixemos para os de Foz Côa.


Faço um convite aos Ruivanenses. Não deixem morrer os usos e costumes da nossa terra, se na prática se não puderem reviver, escrevam a título de memória nestes moldes para o Jornal de Vieira ou outra publicação, assim pelo menos transmitimos pela escrita aos vindouros a biografia da nossa aldeia.


 


Manuel Joaquim F. Barros



    


     Artigo cedido pelo autor e que pode ser consultado na edição de 01 Jul 2001 d' O Jornal de Vieira.

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