segunda-feira, 1 de setembro de 2014

«A arte do granito»


Um dos traços mais impressionantes da civilização do Norte de Portugal é certamente a mestria na construção de granito. Nas casas, nos muros, nos suportes, nos monumentos, a pedra constitui sempre o principal material de construção. Terrenos de maciço antigo dispõem de granito, de xisto e de quartzite. A ultima rocha é muito dura, pesada e difícil de trabalhar; o seu uso é limitado a raras povoações muito rústicas assentes nas próprias surgências, usando-se em muitas delas a par com o xisto. Este extrai-se das pedreiras em lascas que não carecem de nenhum preparo para se sobreporem, ou em placas de ardósia, usadas como cobertura em certas áreas de montanha e, nalgumas cidades (Porto, Viseu, etc.), como revestimento de paredes de tabique. Mas é raro que o xisto dê grandes blocos resistentes: nas casas humildes recorre-se à madeira para os lintéis das portas, nas melhores às ombreiras de granito. Alguns castelos de xisto, grosseiramente aparelhados, têm também cunhais de granito, lavrados com outro esmero. O papel essencial que desempenham na construção pode avaliar-se pela pena aplicada a certos deles na Idade Média: retirar-lhes os cunhais; na falta deste apoio, o resto da muralha não tardava a ruir. Os reis castigavam assim os atrevimentos feudais de certos senhores, tão ciosos da sua autonomia como aqueles da centralização monárquica. Onde os dois materiais existem lado a lado, a preferência pelo granito é manifesta. Em terras xistentas pode dizer-se que qualquer construção importante – igreja, castelo ou solar – raro é que não empregue esta rocha. É portanto no granito que se devem procurar as expressões mais perfeitas, ou mais ousadas, de uma arquitectura popular de pedra.
A extracção, ainda hoje, é feita à mão e por processos rudimentares (figura 1). Uma barra fina e aguçada, cuja ponta se mantém alternadamente em duas posições cruzadas, vigorosamente martelada, funciona como broca. Um tiro de pólvora de fogueteiro é o máximo com que a técnica moderna contribui. O alvião, a picareta, o martelo e a marreta fazem o resto. Para obter uma fractura alinhada, marcam-se os guilhos ou cunhos uns pontos pouco espaçados; enterrando-os na rocha por percussão, esta não tarda a estalar. Os blocos assim obtidos, desbastados e alisados, podem tomar a forma que se deseje.
Usam-se na construção de paredes de casas vários tipos de aparelho. Nas habitações mais antigas e de tipo mais rústico, nos anexos de lavoura, empregam-se blocos de várias formas e tamanhos, que se ajustam e travam pelas próprias irregularidades (est. IV); o uso de argamassa não é geral e denota um aperfeiçoamento do processo de construção. Os cunhais e molduras são, mesmo em habitações humildes, feitos de grandes blocos regulares. As boas casas de aldeia, muitas vezes datadas do século XVIII – correspondentes a um período de prosperidade alimentada pelas minas do Brasil, quando o Norte ministrava já grandes contingentes à emigração – usam um aparelho regular, de blocos grandes mas desiguais, tão perfeitamente sobrepostos que dispensam argamassa (est. V). Os enormes lintéis das portas são quase sempre a maior pedra da construção. Estes tipos ocorrem em todo o Norte granítico de Portugal. Os solares da fidalguia rural tomam quase sempre um cunho artístico e a pedra aparece neles finalmente lavrada (est. V e VI).
No Minho tem-se generalizado modernamente um tipo especial – a paleta - , um bloco rectangular sempre na mesma dimensão, que se sobrepõe com regularidade, desencontrando as juntas verticais. Com grande firmeza de mão, os pedreiros fabricam dezenas delas ao fim de um dia. Eles próprios gabam as suas vantagens: sempre iguais, fáceis de transportar, permitem mudar uma casa de um sítio para outro aproveitando o material de que é feita.
(…)
O maior virtuosismo no trabalho do granito está, porém, nos esteios de vinha, que podem alcançar três metros de altura, com uns dedos apenas de largura (ests. VII e VIII B). Assim como a pasta é o granito talhado em «paus», altos, finos e incrivelmente direitos. Tão delgados que não resistiriam ao transporte individual: assim, vêm da pedreira geralmente aos pares, apontando-se os guilhos para a separação final no lugar onde vão ser utilizados. A distribuição dos esteios, destinados a suspender as ramadas, é proximamente a da vinha alta ou de enforcado. No planalto da Beira Alta, onde se pratica com grande generalidade a rega à picota, usam-se, a par da forquilha de madeira, um ou dois esteios de granito, mais baixos e mais largos que os de vinha, onde gira a vara que forma o balancé.
Onde a arte do granito alcança maior finura é geralmente no espigueiro ou canastro para secar as maçarocas de milho (ext. IX). Na origem, este anexo inevitável de toda a casa rural é uma espécie de cesto de vime entrançado e coberto de palha, donde lhe vem um dos nomes mais conhecido. Foi talvez a introdução do milho americano que suscitou, pela maiores colheitas, o emprego de construções mais vastas e duradouras. Junto do espigueiro fica a eira, uma simples laje natural ou, na falta dela, uma construção de blocos de granito, de grandes dimensões; noutros lugares usa-se a eira de terra batida, que se prepara todos os anos antes das malhas, amassada com bosta e calcada a pé de ovelha. Eira permanente e espigueiro acompanham, na Beira Litoral e no ocidente de Trás-os-Montes, a difusão do milho como cereal preponderante no preparo do pão.
Em todo o Norte atlântico os limites dos campos são formados de renques de árvores ou arbustos; mas as bouças, onde se roça o mato e crescem os pinheiros e carvalhos, e os lameiros ou prados permanentes, ao mesmo tempo lugares de pastagem e corte de feno, são cuidadosamente resguardados com muros de pedra solta. Da mesma forma, nos declives, os canteiros ou arretos destinados a suster a terra. As calçadas de grandes lajes são frequentes, nas ruas e largos das cidades e lugarejos e nos caminhos e serventias. Algumas aproveitam as velhas estradas romanas, outras continuam o mesmo processo de construção. Um passeio elevado acompanha as ruas, onde se curte o estrume, e o fundo dos valeiros empapado nas águas dos lameiros. São de pedra as poldras com que se atravessa o regato e o pontão rústico com que se passa o ribeiro: não apenas suportes mas as próprias «pranchas» que cobrem o vão entre eles.
Utensílios de granito, além das mós e das pedras de lagar, reduzem-se à salgadeira, onde se guarda a carne e a gordura de porco, à pia dos cevados e à escudela das galinhas, certamente sugeridas por simples cavidades praticadas na rocha, também de largo emprego; às vezes usam-se «argolas» encastradas nas paredes das casas ou quinteiros, para prender as montadas, que no Sul são sempre de ferro, excepto nas regiões calcárias onde também se fazem de pedra.
O Minho mostra assim, no trabalho do granito, todos os processos correntes e ainda os mais finos, que aí são confinados. Uma aplicação à técnica moderna é o calcetamento das estradas principais com paralelepípedos, preparados nas pedreiras junto a Vila Nova de Gaia, apreciados dos construtores pela sua duração e dos automobilistas pela segurança com que as rodas se agarram ao piso. Nos aspectos da natureza e nas obras humanas, o granito é um traço essencial da paisagem da maior extensão do Norte do País. Segundo a formula em voga, se existe uma «civilização do granito» é este um dos lugares do globo onde ela se torna uma expressão mais completa. (2)

(1) Emprega-se aqui «arte» no sentido popular e corrente, onde cabe também o sentido restrito da arte culta.
(2) Um geólogo minhoto foi sensível a esta originalidade:«Tirem ao homem do noroeste peninsular este maravilhoso elemento e será toda uma civilização que desaba.» (Carlos Teixiera, Alguns aspectos da geologia dos granitos do Norte de Portugal, Porto, 1945)



Retirado do livro GEOGRAFIA E CIVILIZAÇÃO de Orlando Ribeiro Fac-Simile da 1ª Edição (1961) de 2013. 





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