terça-feira, 12 de novembro de 2013

Ontem desci à ponte de pedra!...


Ontem desci à ponte de pedra pelo velho caminho de Vale, Buraca abaixo. As pernas foram-se moldando às irregularidades da calçada, sempre com preocupação de um solavanco maior, ou de uma escorregadela numa pedra mais lisa ou numa outra solta. Serpenteei pelos espaços deixados livres pela vegetação. Curvei-me sob as silvas que procuram conquistar o espaço do caminho e apreciei, languidamente, a rudeza do acesso, dos montes e campos, e meditei o quão agreste foi a vida daqueles que construíram caminhos e muros, amansaram courelas e marcaram as pedras da calçada ao longo das gerações, com sangue, suor e lágrimas!..

Lá cheguei eu à ponte. Ali estava ela, como sempre esteve desde que a engenharia humana, por necessidade de comunicação e circulação, enobreceu as duas margens do Saltadouro com tão bela obra e as uniu. Parei ao meio do tabuleiro e direccionei o meu olhar para jusante, mais precisamente para o “poço negro”. Ali fiquei a meditar e recuei os meus pensamentos ao tempo de meninice. Aquela ponte, de lajes nuas no tabuleiro, guardas laterais em todo o seu comprimento, limpa de heras e outros arbustos… Lá no fundo, as águas límpidas do rio alimentavam o poço negro, onde crianças e adultos em agitação usufruíam da frescura daquele espaço, ora procurando o melhor e mais alto penedo para um bom mergulho, ora gozando o Sol de uma tarde de Verão. Ali estava eu, também despido de preconceitos, à procura de um elogio sobre a minha arte de nadador. Pela memória passaram-me inúmeras  recordações de companheiros de brincadeira!...

Ao fim de algum tempo direccionei o olhar para montante, na direcção do velho moinho do “Bárbara”. Ali estavam aquelas mulheres, de pernas metidas na água até aos joelhos, debruçadas sobre as pedras do rio, ora centrando a atenção na roupa que lavavam da prole, ora olhando na direcção do poço negro preocupadas com algum petiz. Cobrindo o verde dos amieiros a brancura da roupa lavada e sobre as rochas a roupa a corar ao sol. Mais acima, o rebanho de ovelhas que percorria o leito à procura do carriço fresco.

Acordei do sonho. A ponte ali estava com as  lajes do tabuleiro cobertas por espessa camada de terra e pedras para ali arrastadas pelas chuvas; as gateiras para escoamento das águas tapadas com cimento que cobre tubos de águas particulares; as guardas laterais incompletas; as heras que se entranham na estrutura e  cobrem a sua beleza, e o medronheiro que perfura com as raízes as suas entranhas e abalam a obra de engenharia humana. Ali estava a ponte, em processo de classificação, abandonada…

Rumei em direcção a Ruivães e percorri parte daquela que foi a XVII via romana. Lá estão, bem vincadas nas pedras da calçada, as marcas dos ferros dos rodados em testemunho de vidas passadas de trabalho, de luta, de espírito de sacrifício e ensinamentos para hoje e amanha!..

Por aqui me fico.

Vale, 2013.11.09


Fernando Araújo da Silva

3 comentários:

Anónimo disse...

Aqui está a história de um bonito sonho que, infelizmente, se veio a tornar num pesadelo.
Um povo que não sabe, não quer ou não é capaz de preservar o seu património cultural é um povo que está, à priori, destinado a perder a sua identidade e a desaparecer do mapa humano.
As autarquias - Junta de freguesia / Câmara Municipal - têm muitas responsabilidades neste e noutros processos de destruição que verificamos de Norte a Sul de Portugal.
Infelizmente, e por via de regra, quem se candidata e consegue estes lugares, está mais interessado em satisfazer clientelas partidárias que lhe garantam a reeleição, do que em preservar o que é património de todos.
E quando digo de todos, quero referir-me aos que vivemos no hoje e também aos vindouros, a quem temos o dever de legar aquilo que herdámos dos nossos antepassados.
E o IGESPAR não terá também uma palavra a dizer ou um "mea culpa" a pronunciar?
Ruivanense Adoptivo

Anónimo disse...

Neste texto revi-me, na inocência da infância vivida, quedei-me na nostalgia de dias que não tornam, fiquei presa nos rostos que conheci, nas brincadeiras e tropelias que fizeram de mim o que sou hoje. O abandono de Vale e de Ruivães é notório e não é porque não tenhamos tido ao longos dos tempos gentes da terra nas carreiras políticas, mas porque faltou força e coragem para impulsionar. Hoje também o país parece estar ao abandono... Anseio para que se lembrem de nós sempre e não apenas quando é para votar.

Anónimo disse...

Embora não tenha a vivência do autor do texto(que inveja a minha!!!) foi com grande simpatia que o li.
Este local foi, durante muito tempo, um ponto preferencial para os meus passeios com os camaradas do costume.
Adorávamos ir até lá, ora pela via romana, ora rio abaixo. E o passeio terminava, invariavelmente, com uma banhoca naquela água nem sempre quente mas sempre muito apetecível.
Ai, que saudades...
Vamos?
Ana Miranda